Ao se ler F. Coulanges em A Cidade Antiga se percebe facilmente como
o conceito de Deus surgiu: o homem criou Deus à sua imagem e
semelhança. Até porque nada eram, os deuses primevos, além dos
antepassados mortos do homem, que ao término da vida continuavam a
habitar a mesma casa de seus descendentes, desde que seguidos
determinados rituais supersticiosos periódicos e minuciosos. Tinham
sede, fome, tinham suas necessidades e continuavam protegendo o seu
lar (ao lado dos seus), desde que seguidos determinados rituais e
feitas as libações para que se os mantivessem alimentados. Os que
morriam e não possuíam um descendente, homem, que lhes oferecesse
rituais, estariam condenados à danação eterna e vagariam como
espíritos amaldiçoados, importunadores dos vivos (almas penadas).
Dos lares, às frátrias ou cúrias, às tribos, até as cidades, foi
o mesmo conceito de religião que os mantiveram coesos. Todas as
famílias coexistiam na cidade sob a proteção de um Deus comum, bem
como dos diversos outros deuses familiares que, ainda assim, não
perderam a sua autoridade perante seus lares. Cada família, ainda
tinha por deuses mais queridos os seus mortos e mantinham acessos em
suas residências os seus fogos lares e lhes prestavam as mesmas
homenagens ritualísticas. E na mesma escala, os deuses comuns da
cidade tinham um vínculo antepassado entre todas as famílias que
compunham cada tribo e cada cidade.
Os deuses eram tão presentes que participavam ao lado dos seus em
suas batalhas e em suas guerras. Se perdiam os homens, também era
porque aqueles foram subjugados pelos deuses do inimigo. Assim como
seu povo, também eram exterminados ou escravizados, ou incorporados
aos vencedores. Tão estreita se tornara a relação entre homem e
deus que não se pôde mais aferir com facilidade quem dera origem a
quem. A interdependência entre um e outro, - que no início era
clara, pelo fato de que se não houvesse homem para cultuar aos
deuses, estes cairiam em danação – ao final já não se podia
definir quem dependia mais do outro. Os criadores acabaram tendo uma
dependência tão grande de suas criações que não se pôde mais
prescindir de nenhum dos lados. Se o homem não rendesse culto aos
seus antepassados, estes padeceriam na eternidade – condenados a
uma danação eterna; também um homem sem antepassados ao quais
pudesse render homenagem, era condenado à danação na terra. Sem
ninguém que os protegesse ou zelasse por sua segurança ou até
mesmo da prosperidade de suas colheitas, e da saúde de seu gado
estaria à mercê das forças da natureza e relegado à própria
sorte. Assim como após a sua morte, não teria outro destino que não
o mesmo das almas que penavam a importunar os vivos eternamente sobre
a vagar terra; seriam ambos malditos.
Desta maneira, percebe-se facilmente como deuses e homens acabaram se
confundindo e assim se misturando ao ponto de se justificar a
subversão do conceito original. No decorrer da história os
conceitos originais foram revolvidos, e o criador passou a ser a
criação e toda a superstição se tornou religião. Já o
sentimento de religiosidade, ou sentimento oceânico, que cita Freud
- aliás sob análise deste mesmo aspecto da história - que podemos
também chamar de religiosidade, pelo exposto acima, não se pode
explicar da forma como ele acreditava.