quarta-feira, 27 de maio de 2015

Criador e criação

 Ao se ler F. Coulanges em A Cidade Antiga se percebe facilmente como o conceito de Deus surgiu: o homem criou Deus à sua imagem e semelhança. Até porque nada eram, os deuses primevos, além dos antepassados mortos do homem, que ao término da vida continuavam a habitar a mesma casa de seus descendentes, desde que seguidos determinados rituais supersticiosos periódicos e minuciosos. Tinham sede, fome, tinham suas necessidades e continuavam protegendo o seu lar (ao lado dos seus), desde que seguidos determinados rituais e feitas as libações para que se os mantivessem alimentados. Os que morriam e não possuíam um descendente, homem, que lhes oferecesse rituais, estariam condenados à danação eterna e vagariam como espíritos amaldiçoados, importunadores dos vivos (almas penadas).
Dos lares, às frátrias ou cúrias, às tribos, até as cidades, foi o mesmo conceito de religião que os mantiveram coesos. Todas as famílias coexistiam na cidade sob a proteção de um Deus comum, bem como dos diversos outros deuses familiares que, ainda assim, não perderam a sua autoridade perante seus lares. Cada família, ainda tinha por deuses mais queridos os seus mortos e mantinham acessos em suas residências os seus fogos lares e lhes prestavam as mesmas homenagens ritualísticas. E na mesma escala, os deuses comuns da cidade tinham um vínculo antepassado entre todas as famílias que compunham cada tribo e cada cidade.
Os deuses eram tão presentes que participavam ao lado dos seus em suas batalhas e em suas guerras. Se perdiam os homens, também era porque aqueles foram subjugados pelos deuses do inimigo. Assim como seu povo, também eram exterminados ou escravizados, ou incorporados aos vencedores. Tão estreita se tornara a relação entre homem e deus que não se pôde mais aferir com facilidade quem dera origem a quem. A interdependência entre um e outro, - que no início era clara, pelo fato de que se não houvesse homem para cultuar aos deuses, estes cairiam em danação – ao final já não se podia definir quem dependia mais do outro. Os criadores acabaram tendo uma dependência tão grande de suas criações que não se pôde mais prescindir de nenhum dos lados. Se o homem não rendesse culto aos seus antepassados, estes padeceriam na eternidade – condenados a uma danação eterna; também um homem sem antepassados ao quais pudesse render homenagem, era condenado à danação na terra. Sem ninguém que os protegesse ou zelasse por sua segurança ou até mesmo da prosperidade de suas colheitas, e da saúde de seu gado estaria à mercê das forças da natureza e relegado à própria sorte. Assim como após a sua morte, não teria outro destino que não o mesmo das almas que penavam a importunar os vivos eternamente sobre a vagar terra; seriam ambos malditos.

Desta maneira, percebe-se facilmente como deuses e homens acabaram se confundindo e assim se misturando ao ponto de se justificar a subversão do conceito original. No decorrer da história os conceitos originais foram revolvidos, e o criador passou a ser a criação e toda a superstição se tornou religião. Já o sentimento de religiosidade, ou sentimento oceânico, que cita Freud - aliás sob análise deste mesmo aspecto da história - que podemos também chamar de religiosidade, pelo exposto acima, não se pode explicar da forma como ele acreditava.